30 novembro 2007

Você quem é?!

Na publicidade e nos programas de rádio, todos nós somos “você”. Você sabe, você escolhe, você para cá, você para lá.

Porém, apesar de se ter generalizado, essa forma de tratamento gera reacções, no mínimo, controversas. Por uns é considerada uma forma respeitosa, já que é proveniente de vossa mercê, depois contraída na versão vocemessê e, posteriormente, abreviada para você. Por outros é mal aceite, sendo encarada como uma falta de respeito para com a pessoa desconhecida que se pretende interpelar. Para esses, você implica demasiada confiança e deveria ser substituído por “o senhor” ou “a senhora”.

Seja como for, a verdade é que esta forma de tratamento gera algumas dificuldades aos falantes de língua portuguesa. Para começar, nem sequer é uma das seis pessoas que podem ditar a flexão dos verbos (eu, tu, ele/ela, nós, vós, eles).

A sua utilização obriga a uma combinação estranha entre tu, vós - porque vocês, tal como tu e vós, corresponde à pessoa a quem se fala - e ele/ela(s) - porque a flexão dos verbos, quando a pessoa é você(s), se faz de acordo com a terceira pessoa. Assim, dizemos “você está óptimo” e “vocês sabem muito”, e não *“você estás óptimo”, nem *“vocês sabeis muito”. Aliás, talvez tenha sido precisamente por causa da formalidade (e da dificuldade) das flexões da pessoa vós (estais, estiverdes, estivestes...) que se generalizou o uso, bem mais simples, de você (está, estiver, esteve), quando não queremos ou podemos tratar o nosso interlocutor por tu.

No entanto, você (pronome tónico) também não é assim tão fácil, sobretudo no que toca à pronominalização dos verbos – isto é, quando implica escolher o respectivo pronome átono. Por exemplo, muita gente hesita entre dizer “vou contar-vos uma história, se vocês se calarem” ou “vou contar-lhes uma história”.

Já agora... o que é que VOCÊS diriam?! (Perdoem-me a confiança!...)

28 novembro 2007

A vírgula e a sintaxe – amigas inseparáveis

Sabiam que as vírgulas podem alterar a sintaxe de uma frase?

Observem os exemplos seguintes, que diferem apenas na presença/ausência de vírgulas:

(1) O irmão da Ana que mora em Paris não vem ao casamento.
(2) O irmão da Ana, que mora em Paris, não vem ao casamento.

Pois bem, a presença ou ausência de vírgulas dá origem a orações diferentes.
No exemplo (1), a oração “que mora em Paris” é uma relativa restritiva, que restringe o âmbito do nome “irmão”, ou seja, indica-nos que só o irmão que mora em Paris é que não vem ao casamento (e dá-nos a ideia de que a Ana tem mais irmãos para além desse).
Se omitíssemos a oração relativa “que mora em Paris”, o sentido da frase seria alterado:
“O irmão da Ana não vem ao casamento” (esta frase tem um significado diferente de “o irmão da Ana que mora em Paris não vem ao casamento").

Na frase (2), “que mora em Paris” é uma oração relativa explicativa, a qual nos dá apenas uma informação adicional, acessória, pelo que a sua omissão não altera o sentido global da frase: o irmão da Ana não vem ao casamento (ela só tem um irmão).

E termino com um desafio: por que razão os exemplos (3) e (4), SEM VÍRGULAS, são agramaticais (i.e. incorrectos do ponto de vista sintáctico-semântico)?

(3) * Os linces que são mamíferos estão em vias de extinção.
(4) * Steven Spielberg que realizou o “Parque Jurássico” ganhou celebridade mundial.

26 novembro 2007

Recandidatar e conflituar

Ouvimos falar, quase todos os dias, de pessoas que se recandidatam a cargos e de coisas, entidades ou até pessoas que conflituam ou são conflituantes – isto é, que provocam ou envolvem conflitos. Contudo, os verbos conflituar e recandidatar não constam dos dicionários mais à mão (ou melhor, mais ao dedo!), como o Priberam (Texto Editora) e a Infopédia (Porto Editora).

Porque será? Por lapso? Por se estar a aguardar mais um tempo, para se ter a certeza de que estes verbos vieram para ficar?

Em todo o caso, recandidatar e conflituar constam da Mordebe, valha-nos isso! Para não ficarmos a pensar que não existem, afinal de contas...

23 novembro 2007

MOS com e sem hífen


Eu agradeço, tu agradeces, ele agradece, nós agradecemos, vós agradeceis, eles agradecem.
Quem é que não sabe que isto é o Presente do Indicativo do verbo agradecer?
Então por que razão há tanta gente a colocar o hífen (indevidamente) entre o radical e a terminação do verbo, na primeira pessoa do plural?

Trata-se de uma confusão entre essa forma verbal (agradecemos) e uma outra, que corresponde a outra pessoa (a terceira do singular ou a segunda do singular, se o verbo estiver no modo Imperativo) e traz uma contracção pronominal após o hífen: me + os (= mos).
Assim, vejamos estas frases:

Enfermeira - Levo-lhe jornais e revistas ao quarto e ele agradece-mos sempre.
A pessoa em causa (ele) agradece os jornais e revistas à enfermeira que fala, daí a contracção me (a mim) + os (jornais e revistas)

Doente - Nós agradecemos sempre às enfermeiras pelas suas atenções.
O doente fala por si e pelos outros doentes, usando a primeira pessoa do plural, que termina em "mos", sem hífen)

Doente - A enfermeira trouxe-me os jornais quando eu não estava no quarto. Se a vires, agradece-mos, por favor.
Neste exemplo (um pouco menos provável), o doente que fala pede a outro que faça algo por ele, por isso também usa "me" (como quem diz "por mim"), agregado ao pronome que representa o objecto directo (os , que substitui jornais). O verbo, aqui, está no modo Imperativo e refere-se à pessoa "tu".

Portanto, quando a pessoa que desempenha a acção expressa pelo verbo "somos" nós, não há hífen antes de mos. Quando se trata de outra pessoa e mos representa complementos do verbo, escreve-se com hífen.
E existe ainda outra forma de sabermos se a forma verbal em causa leva hífen ou não: quando não leva, a sílaba tónica fica mesmo junto à terminação: agradecemos; quando leva, a sílaba tónica "desloca-se" para trás: agradece-mos.

Foi muito confuso?!




21 novembro 2007

Post, postar, poster...

Quem, como nós, é participante activo na blogosfera, já se ouviu certamente dizer que vai “postar um post”. Depois, talvez se tenha sentido um pouco envergonhado, ridículo, ou mesmo ligeiramente traidor – conforme o amor que tenha à sua própria língua.

É inegável que vivemos numa era de importação desenfreada de palavras estrangeiras para o português, sobretudo vocábulos relacionados com as novas tecnologias (mas não só), e principalmente vindos da língua inglesa. É completamente impossível manter uma conversa sobre informática ou sobre o mundo virtual criado pela Internet sem dizer palavras que põem os avós a pensar que os netos já não falam a mesma língua do que eles, como software, e-mail, browser, save, blog, e por aí fora.

Os poucos que se esforçam por traduzir os conceitos, dizendo, por exemplo, “senha” em vez de password, “transferência” em vez de download, ou “caneta” em vez de pen, correm o risco de não serem entendidos, de ficarem de fora ou para trás. Porque a linguagem que se gerou é como um rio poderoso, que arrasta tudo e todos na sua frente.

No entanto, há termos ingleses que provêm do latim e que, apesar de parecerem, não são verdadeiros estrangeirismos. A palavra post, por exemplo, usada por quase toda a gente que tem ou lê blogues, é de origem latina. E desde, pelo menos, o século XIV que se usa o verbo postar em português (de posto, segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de José Pedro Machado) – obviamente, não com o sentido de “publicar algo num blogue”, mas com um sentido muito próximo, apenas mais abrangente: “pôr, colocar”. Por isso, um poster (post + er), em inglês, designa um cartaz que é afixado, isto é, postado. Ou seja, o sufixo é deles, mas a raiz é nossa!

Portanto, se é ridículo pronunciar “paust” à inglesa, já não pode ser acusado de barbarismo aquele que disser postar, à portuguesa, em vez de “pôr on-line”. Da próxima vez que vos sair esse verbo supostamente moderno, não se retraiam. É do mais vernáculo que há!

19 novembro 2007

Quilos e não “kilos”



Segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de José Pedro Machado, -quilo- é um “elemento de composição de nomes e medidas criadas pelo estabelecimento do sistema métrico; traduz a ideia de «mil»” e vem do grego chílios.

Não se percebe, por isso, que ainda haja quem cometa o erro de escrever “kilos” em português – confundindo a palavra com o símbolo kg, ou copiando servilmente o inglês.


16 novembro 2007

Acentos a menos

Agora é a vez dos “pecados por defeito”: erros ortográficos por falta de acentos.
E não me venham dizer que os acentos não servem para nada, porque servem e servem muito. Reparem como nos seguintes exemplos a presença ou ausência de acento dá origem a uma palavra diferente:

- estudámos (Pretérito Perfeito do Indicativo) / estudamos (Presente do Indicativo)
- pôr (verbo) / por (preposição)
- pára (verbo parar) / para (preposição)
- influência (nome) / influencia (verbo)
- contínua (adjectivo) / continua (verbo)

Gostaria ainda de salientar algumas palavras graves terminadas em ão, que são frequentemente escritas sem acento: *benção, *orfão, *orgão e *sotão.
Eu até sei porque é que isso acontece. Generalizou-se a ideia de que o til é um acento gráfico e, por esse motivo, hesita-se em colocar um acento na primeira sílaba destas palavras, porque “ficariam com dois acentos e isso não é possível em Português”.
Ora, convém esclarecer que o til não é um acento gráfico, mas sim uma marca de nasalidade, indicando vogais nasais (ex. irmã) ou ditongos nasais (ex. irmão). Normalmente, este ditongo coincide com a sílaba tónica (leão, coração, etc.), mas há casos em que pode não coincidir. Em bênção, órfão, órgão e tão, o acento tónico encontra-se na primeira sílaba.
Experimentem pronunciar pausadamente estas palavras, sem acento, e vão verificar que a tónica recairá na sílaba em que ão se inclui. Vão com certeza achar graça a essa prosódia!

Estas palavrinhas são muito vaidosas, por isso, não se contentam com um adereço apenas, e exigem sempre mais um! Digam lá se não ficam bem mais elegantes com dois!

bênção, órfão, órgão e sótão

14 novembro 2007

Acentos a mais

Alguns erros ortográficos decorrem da falta de acentos, mas muitos resultam também do seu excesso. Considerem-se as seguintes palavras que costumam“pecar” por excesso:

*alcoolémia, *rúbrica, *outrém, *inclusivé, *à priori, *sózinho e *diáriamente.

Alguns destes erros têm origem em vícios de pronúncia, é o caso de *alcoolémia e *rúbrica. (ver E se recusasse fazer o teste da “alcoolémia? e ainda a “rúbrica).

Outros são cometidos por analogia com palavras semelhantes, por exemplo, *outrém (por analogia com ninguém e alguém). Uma das regras de acentuação diz que são acentuadas apenas as palavras agudas (não monossilábicas) terminadas em -em. Ora, outrem é uma palavra grave.

Verifica-se, ainda, uma tendência para colocar um acento gráfico em determinadas vogais abertas: *à priori e *inclusivé. Estas palavras são expressões latinas e, por isso, a sua grafia original deve ser respeitada (em latim não havia acentuação gráfica). Para além disso, se pronunciarmos a palavra inclusive pausadamente, verificamos que o acento tónico recai na sílaba si, logo, não faz sentido colocar um sinal gráfico na vogal /e/.

Por fim, palavras terminadas em -mente e em -zinho têm também por hábito receber um acento! Por exemplo: *sózinho e *diáriamente. Ao associar qualquer sufixo a uma palavra base, o acento tónico avança “uma casa”, passando a recair na primeira sílaba do sufixo. Por isso, essas palavras não devem ter qualquer acento gráfico, já que este daria uma falsa indicação do acento tónico.

Digam lá, então, se as ditas palavrinhas não ficam mais bonitas sem qualquer adereço!

alcoolemia, rubrica, outrem, inclusive, a priori, sozinho e diariamente.

12 novembro 2007

“Encontrar-se-á” ou “encontrar-se-à”?

Muitos têm a tentação de colocar um acento grave nesse a que fica “pendurado” no final das flexões de verbos no Futuro do Indicativo, quando existe mesóclise.

“Mesóclise?! Que palavra estranha! O que é isso?”, estarão alguns leitores a perguntar. Simples: vem de -meso-, elemento de composição de origem grega que significa meio, e usa-se para designar as formas verbais em que o pronome não aparece antes, nem depois, mas sim no meio do verbo. Já agora, porque os palavrões são só três, sistematizemos:

Próclise: pronome antes do verbo. Ex.: “Quem te disse isso?”

Mesóclise: pronome no meio do verbo. Ex.: “Entregar-te-ei em breve”

Ênclise: pronome depois do verbo. Ex.: “Deram-nos mais tempo.”


Ora, na realidade, a mesóclise só o é hoje em dia. Porque aquele á, ou aquele ei, que aparece depois do pronome, no Futuro do Indicativo, e que dizemos ser a terminação do verbo, é o que resta da flexão do verbo haver, que se usava (e ainda usa!) como auxiliar, para exprimir a ideia de futuro. Reparem:


Encontrar-se-á é, na verdade, encontrar-se-(h)á – ou seja: há-de se encontrar

Entregar-te-ei é, na verdade, encontrar-te-(h)ei – ou seja: hei-de te entregar


Assim, não há dúvida: o acento do -á é agudo, exactamente como o acento de . Só lhe falta o h!


09 novembro 2007

Trás não é traz!


Ainda há quem confunda estas duas palavras, tão distintas em termos de significado!

Traz é flexão do verbo trazer (por isso se escreve com z...), na terceira pessoa do singular no Presente do Indicativo (“Ele traz os teus livros”) e também na segunda pessoa do singular no Imperativo (“Traz aquela cadeira, por favor”).

Trás é preposição e é pouco habitual aparecer sozinha, pois costuma usar-se em locuções (por trás, de trás...), ou ser substituída pelo composto atrás.

Porém, não há que enganar: quando é forma do verbo trazer, traz o z do Infinitivo!


Sempre que vejo a porta da imagem, tenho vontade de ir lá bater, para perguntar: “trago o quê?”

07 novembro 2007

Um desafio com o verbo PODER

O verbo poder assume diferentes valores semânticos, consoante o contexto frásico. Vejamos quais são esses valores:

1º valor: permissão - Ex.: Podes usar o meu telefone à vontade!
2º valor: probabilidade - Ex.: Leva o guarda-chuva, porque pode chover.
3º valor: capacidade - Ex.: Este elevador pode levar até 5 pessoas.

Por vezes, este verbo exibe simultaneamente dois valores, dando origem a frases ambíguas. Por exemplo, a frase
“Os ciclistas podem passar por aqui” pode significar:

1. “É-lhes permitido que passem por aqui” (valor de permissão);
2. “É provável que passem por aqui” (valor de probabilidade).

Porém, se substituirmos o sujeito “ciclistas” por um fenómeno da natureza, como “ciclone” (o ciclone pode passar por aqui), há uma leitura que é automaticamente bloqueada. Qual é e porquê?

Nesta linha de pensamento, deixo-vos mais um desafio. Considerem as seguintes frases e digam que interpretações podem ter:

(a) O Tomás pode ir à festa.
(b) O Tomás não pode ir à festa.
(c) O Tomás pode não ir à festa.

05 novembro 2007

Cuidado com a vírgula!

Há tempos, havia por Lisboa cartazes que sensibilizavam a população para a necessidade de reciclar as pilhas. O texto, destacado no meio de um fundo verde, era simplesmente assim:

NO LIXO, NÃO

NO PILHÃO.

Repararam como a vírgula, aliada à falta de pontuação logo após o advérbio não, compromete o sentido da frase?

É que, em muitos casos, a vírgula serve para separar orações. Assim, e sabendo que a linguagem publicitária é muitas vezes elíptica, podíamos perfeitamente interpretá-la da seguinte forma:

1ª oração – uma imperativa, com omissão do verbo e do objecto directo: “[deitem as pilhas] no lixo,”

2ª oração – outra imperativa, com as mesmas omissões: “não [as deitem] no pilhão”.

Ou seja: Deitem-nas no lixo [e] não no pilhão!

Resultado: veiculava-se, ali, exactamente o oposto do que se pretendia!

02 novembro 2007

Sob e sobre

Eis uma confusão que persiste, embora as palavras em causa tenham sentidos opostos. Sob significa “debaixo de” (vem de sub, que se usa como elemento de formação em palavras como subterrâneo e subentender), sobre é “por cima de” e vem de super, que tem o mesmo sentido em latim.

Talvez por se tratar de duas palavrinhas curtas e semelhantes, ouve-se às vezes dizer, erradamente, que alguém está, por exemplo, “sobre pressão”, ou seja, usa-se sobre em vez de sob.

Há dias, numa série informativa do canal Panda, explicaram que “os gorilas vivem em grupos, sobre o comando de um macho líder.” Até estremeci! Uma coisa é ouvir uma pessoa cometer um erro destes na rua... mas num programa supostamente educativo para crianças e adolescentes? Como é que um tradutor comete um erro desses? E como se admite que quem edita e narra o texto não dê por ele?

Os gorilas obviamente obedecem ao líder. Como tal, estão debaixo do seu comando (sob) e não “acima” dele (“sobre”)...