31 julho 2009

Chumbar… é não passar!

O verbo chumbar, do ponto de vista sintáctico, não encontra consenso entre os estudiosos da língua. Os puristas consideram-no um verbo transitivo directo, isto é, um verbo que pede um complemento directo, por exemplo: “O professor chumbou o aluno”. Construções como “o aluno chumbou” são, portanto, consideradas incorrectas.
Os linguistas contemporâneos, pelo contrário, consideram esse tipo de construções perfeitamente legítimas, designando-as «estruturas causativas”, semelhantes a: “A neve derreteu (com o calor)” = “O calor derreteu a neve” ou “O navio afundou-se (com a tempestade)” = “A tempestade afundou o navio”.
Ora, se no plano sintáctico se aceitam diferentes posições, no plano semântico declara-se tolerância zero! Principalmente aos profissionais da comunicação!
Jornalistas da nossa praça empregaram este verbo inapropriadamente, ao noticiarem o voto contra de alguns partidos relativamente ao relatório da Comissão Parlamentar ao caso BPN, referindo que “o relatório foi chumbado pela oposição”.
Ora, se o relatório tivesse sido chumbado, não teria sido aprovado!
Tal como viver é não morrer, desaprovar é não aprovar, também chumbar é não passar, logo, a notícia deveria ter tão-somente evidenciado que os diferentes partidos votaram contra o dito relatório!

29 julho 2009

A triste história da camisola em Portugal



Era uma vez uma camisola, que havia chegado há muitos séculos a Portugal. Viera de França, mas sem grandes pretensões nem ambições.
Entrara devagar, com discrição e humildade, no nosso léxico e nem se importara quando a obrigaram a substituir o seu e final por um a mais português. O que ela queria era mesmo ficar por cá, por isso achou bem assumir uma forma que a identificasse e confundisse mais com as palavras portuguesas. E a sua vontade e determinação foram tão fortes, que os falantes se esqueceram de que a camisola tinha vindo de fora, acarinhando-a como cidadã do léxico nacional.

Um dia, porém, quando ela própria já tinha esquecido as suas origens, os falantes começaram a impacientar-se com ela. Alguns deixaram de a querer usar, sem razão aparente. Outros acusavam-na de ser demasiado ambígua, de servir para tudo e para nada, de não satisfazer as suas necessidades vocabulares. Alegavam que outras palavras, frescas e sofisticadas, se revelavam muito mais eficazes para aplicar nos diversos contextos em que as camisolas não eram, afinal, simples camisolas. E as divertidas t-shirts, as confortáveis sweat-shirts, os bonitos pullovers, as frívolas sweaters e os jovens tops foram-se insinuando na cabeça dos falantes. Mas, como eram cheias de si, estas palavras fizeram uma exigência: que a sua forma e graça original fossem sempre mantidas, de modo que não admitiam mudanças ortográficas nem deslizes de pronúncia.
E as camisolas, que antes nos tinham servido tão bem, em todas as ocasiões, foram preteridas em favor dessas novatas impertinentes, que agora se julgam as melhores do mundo.

É uma história comum, infelizmente...

27 julho 2009

O absurdo de suicidar outrem


Segundo o
Dicionário on-line da Língua Portuguesa, o verbo suicidar-se é sempre pronominal (não existe "suicidar") e tem as seguintes acepções:

1. Matar-se voluntariamente.
2. Fig. Arruinar-se, ser causa da própria ruína.

Outros dicionários acrescentam que "sui" é latim e significa "de si", pelo que o suicida é aquele que provoca a sua própria morte, ao contrário do homicida (e a esta luz a pronominalização até parece redundante, já que quem se suicida o faz necessária e exclusivamente a si próprio).
Ora, isto não será surpresa para ninguém... excepto talvez para os responsáveis pela definição do mesmo verbo no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, para quem o verbo suicidar (de suicida + -ar) tem um terceiro sentido, que é «destruir completamente», podendo por isso ser sinónimo de «ANIQUILAR, MATAR, TRAIR». E para que não restem dúvidas, lá está o exemplo, a frase que citei na entrada anterior: «O tradutor suicidou o texto».

Os comentários a esta frase na semana passada não foram muitos, mas eu não tenho dúvidas de que, pelo menos ao falante comum, aquele emprego do verbo suicidar se afigura no mínimo estranho. E como não se trata de uma acepção de um domínio técnico ou científico, nem encontro outro dicionário que corrobore aquela informação, começo a pensar que a pessoa que a escreveu se encaixa num destes perfis:

a) abusador de drogas
b) criativo compulsivo
c) abusador de drogas e criativo compulsivo

Posso estar enganada, mas... quem é que me desengana?!


23 julho 2009

Suicídio homicida

Hoje apresento-vos esta frase:

«O tradutor suicidou o texto.»


Gostaria que nos dessem a vossa opinião sobre o emprego que nela se faz do verbo suicidar. Estará correcto? Será usual? A mim soa-me muito mal! Depois vos direi onde a encontrei...

21 julho 2009

A suspensão do suspense....


Desde criança que sempre ouvi dizer suspense com um u assobiado afectadamente, a atirar para o ditongo - [ju] -, um s bem sopradinho por entre os dentes e a letra e transformada em "ã", para tornar bem claro que era uma palavra francesa.
Há muitos anos, contudo, também ouvi alguém dizer (quem teria sido essa alma iluminada?) que andava tudo enganado, porque a palavra suspense era de origem inglesa e, como tal, a pronúncia afrancesada não fazia qualquer sentido e deveria ser prontamente substituida, claro está, por um sotaque muito British, em que o u afinal se tornava um "a".

Os falantes de português pareceram-me então divididos em dois grupos: o dos que faziam uma boquinha pequena para sussurrar o "siuspanse" franciú e o dos que a abriam corajosamente para vocalizar um "saspenssss" à bife. E era preciso decidir qual o lado a escolher, para poder usar aquele estrangeirismo. Porque, tenho de admitir, havia ocasiões em que me parecia que ele era necessário, por mais que me esforçasse por substituí-lo por palavras mais vernáculas, como "suspensão" ou "expectativa-angustiante-mas-que-ao-mesmo-tempo-dá-um-certo-gozo-relativamente-ao-desenrolar-dos-acontecimentos-sobretudo-nas-narrativas-literárias,-televisivas-dramáticas-ou-cinematográficas".

Um dia, resolvi consultar o Dicionário Etimológico de José Pedro Machado e verifiquei, sem grande surpresa, que "suspense" não constava do rol de palavras sobre as quais se forneciam preciosos dados relativos à sua introdução na nossa língua. Mas o Houaiss confirma que se trata de um empréstimo do inglês, que por sua vez foi importado do francês, que por sua vez deriva, claro está, do latim.
Contudo, a origem não é o que mais importa, no fim de contas. Se estivéssemos à espera de saber de que língua vêm todos os estrangeirismos que utilizamos para os podermos pronunciar correctamente, teríamos de suspender o discurso a todo o momento para consultar fontes eruditas, por exemplo antes de dizer pijama, iate ou iogurte.
E o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea aí está para demonstrar que a contenda entre os sotaques francês e inglês para pronunciar "suspense" não se resolve por via erudita: o que conta é a forma como se convencionou dizer a palavra entre nós, ou seja, a pronúncia que nele se recomenda é a que foi consagrada pelo uso e que (lamentavelmente ou não, depende do ponto de vista), acaba por não ser fiel a nenhuma das duas: "suspanse".

Para mim, o "suspanse" perdeu a graça. Não é carne nem peixe, não aquece nem arrefece. Com a desvantagem de criar uma relação imprevisível entre o "a" sonoro e o "e" escrito, que dá azo a erros ortográficos.
Mas pelo menos já podemos pronunciar todos a palavra da mesma maneira, sem receio de que alguém nos venha dizer que estamos enganados. Valham-nos os dicionários com chave fonética!

17 julho 2009

tratar-se-á ou tratar-se-há?!

Numa mensagem em que nos faz a sugestão de abordarmos o tema de hoje, um leitor escreve o seguinte:

«tratar-se-há de uma dúvida tola ou ‘tratar-se-á’ de uma dúvida aceitável?»

Antes de mais, devo dizer que, para mim, e no que toca à língua portuguesa, nenhuma dúvida é simplesmente tola, todas são aceitáveis. Isto porque questionarmo-nos sobre a correcção ou incorrecção de uma forma ou estrutura linguística é um sinal de interesse e inteligência que nunca deve ser desprezado. Quem nos dera a nós, professores, que todos os alunos manifestassem as suas dúvidas, por mais tolas que as achassem!
Por outro lado, quem somos nós para avaliar o grau de relevância ou legitimidade de uma dúvida?... Quantas vezes as perguntas que fazemos sobre o que é certo ou errado parecem tolas e depois se revelam muitíssimo pertinentes? Esta até pode ser um bom exemplo.
Poderíamos dizer logo, sem pensar muito: «que disparate, "tratar-se-há"! Então aquele "á" não se vê logo que é a terminação do futuro do indicativo? Só lá está o pronome se no meio, mais nada! Tratará passa a tratar-se-á e pronto"!»
Mas também podemos ter calma e pensar um pouco. Podemos partir do princípio de que há sempre mais qualquer coisa por trás do óbvio e dar o benefício da dúvida à própria dúvida. Nesse sentido, este leitor até nos ajuda, pois escreveu o seguinte: «uns colegas falaram-me de umas contracções do ‘h’ e tal… que fiquei sem saber :)»
Pois é, caro leitor! As formas verbais que hoje identificamos como "futuro do indicativo" e "condicional" são na verdade o resultado da contracção dos verbos com o auxiliar haver, auxiliar este que identificamos sem dificuldade em construções como "hei-de encontrar", que é na verdade o mesmo que encontrarei (encontrar + hei). De igual modo, "há-de tratar" deu tratar + há, ou seja, tratará, com a supressão do h. Daí termos, com o pronome, tratar-se-á. Com o tempo, portanto, as duas formas verbais (verbo principal e auxiliar HAVER) aglutinaram-se, sendo que em muitos casos uma delas ficou reduzida, ou até ambas. É o caso de fazer + havia, que deu origem a faria = fa(ze)r(hav)ia.

Conclui-se, então, que tem muita lógica a grafia "tratar-se-há", embora seja incorrecta.

15 julho 2009

Cuidado com o alien, um termo alienígena!

A minha filha de seis anos propôs-me este jogo verbal: dizermos à vez palavras começadas pela letra A. Depois da aranha, do ananás, da ave e da águia, da água e do avião, ela saiu-se com o alien. E, na sua inocente determinação, recusou-se a acreditar que a palavra não existia em português.

E a verdade é que a moda dos aliens (dito à portuguesa, "álienes") parece ter vindo para ficar (há 26800 ocorrências no Google em páginas de Portugal). Mas a mim parece-me tola mais esta vénia ao inglês - língua que eu adoro, mas não misturada com a nossa. Estão a ver peixe com carne? É mais ou menos isso...

Afinal, se temos os estrangeiros, os estranhos, os extra-terrestres e os alienígenas, para que é que precisamos dos híbridos "álienes"?!
Bem sei que vem do latim, mas não é por isso que faz cá falta uma consequência das más traduções no cinema...

13 julho 2009

Desafio

O anúncio de um banco reza assim:

«Está na altura do seu crédito habitação mudar de casa.»

Haverá aqui algum tipo de incorrecção linguística?

09 julho 2009

redundância tautológica em jeito de pleonasmo

É tão fácil cair na redundância que quase ninguém resiste a dizer "costumo fazer sempre assim" ou "tenho um amigo meu".
O dicionário Priberam, aliás, informa que a tautologia consiste numa «repetição inútil da mesma ideia em termos diferentes» - ou seja, exemplificando, ao mesmo tempo que define o conceito: tratando-se de uma repetição, para quê dizer que a ideia é «a mesma»?! Isto dá para ver como a tautologia é uma espécie de armadilha em que ninguém deve ter a veleidade de dizer que não cai ou nunca cairá...
Se nos repetimos desnecessariamente, para além de estarmos sujeitos a que se riam de nós ou nos corrijam, ainda podemos induzir os outros em erro, a respeito do que realmente queremos dizer. Quando alguém comenta que "gostou tanto da comida, que repetiu duas vezes", fico sempre na dúvida: serviu-se três vezes ou caiu na malfadada tautologia? Ontem ouvi alguém dizer na rádio que «os alunos repetiam novamente o mesmo ano». Fiquei sem saber se havia ali uma dupla redundância ou se devia fazer uma interpretação mais rebuscada da frase.
Hoje li numa publicação periódica um artigo (interessante, é preciso dizer), cujo infeliz título era este: «Morte súbita ocorre sem aviso prévio». Sendo o assunto sério, acho mal que nos façam rir do texto logo ao início!
E por falar em rir...

06 julho 2009

Língua em crise

Crise é a palavra que está na ordem do dia. Crise na saúde, crise na justiça, crise na educação, crise nos relacionamentos…
E a língua portuguesa está, também ela, em crise. E porquê? Porque se fala e escreve cada vez pior.
Mas o que é, afinal, escrever mal? Será apenas cometer erros ortográficos?
Um texto pode não conter um único erro ortográfico e, no entanto, ser totalmente incompreensível. Isto porque a língua não se resume à ortografia. Há outras componentes da gramática que contribuem para o sucesso ou fracasso da expressão escrita, nomeadamente o léxico, a morfologia, a sintaxe, a pontuação.

Quais serão, então, os motivos que estarão na origem desta crise linguística?
De entre muitos que poderá haver, saliento três:
1. Falta de referências
Os profissionais da comunicação (jornalistas, escritores, professores) deveriam ser para nós uma referência, mas, como sabemos, muitos fazem um mau uso da língua portuguesa.
2. Falta de leitura
Cada vez se lê menos, culpa da falta de tempo ou do excesso de tecnologias, o que é certo é que o pouco que se lê é muitas vezes “descartável” e de má qualidade.
3. Falta de ensino de gramática
Hoje em dia, o tempo dedicado ao estudo da gramática e à prática da redacção nas aulas de Português é cada vez mais reduzido (ou quase nulo), o que tem dado origem a um deficiente domínio da língua, falada e escrita, por parte dos estudantes que ingressam no Ensino Superior.

As evidências falam por si, porém, se é com a crise que portas de mudança se abrem, então aceitemo-la como uma oportunidade de salvar este património tão valioso, que é a Língua Portuguesa!
Ainda vamos a tempo!

01 julho 2009

Receber ou recepcionar?

Lá estamos nós a complicar...

A verdade é que ontem ouvi alguém dizer que estava "prestes a recepcionar um documento" e fiquei a pensar sobre o motivo que teria levado tal pessoa a escolher aquele verbo em lugar do velho, simples, inequívoco e bem conhecido receber.
Ocorreu-me que talvez fosse para dar um ar mais formal ao discurso. Como quem diz "colocar" em vez de pôr, "referenciar" em vez de referir, "visionar" em vez de ver, "focalizar" em vez de focar, enfim... Ou seja, tratar-se-ia de escolher uma palavra mais comprida, apenas porque as mais compridas, mais complexas, as chamadas "palavras de sete e quinhentos" (no meu tempo!), vulgarmente conhecidas por palavras caras, são o sinal mais evidente de que estamos a usar um registo cuidado, formal, acima do corrente.
Em todo o caso, faltou-me a certeza: afinal, recepcionar, verbo formado a partir do nome recepção, significa exactamente o mesmo que receber?

Na Infopédia, a «palavra inserida não foi encontrada». O Priberam informa que a palavra é «reconhecida pelo FLiP mas sem definição no dicionário»... Contudo, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa revela que se trata de uma criação do século XX e no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa o vocábulo também está presente.
Mas não se trata de um simples sinónimo de receber: pode ser acolher ou receber alguém, a nível institucional (dar as boas-vindas) ou acusar a recepção de um documento. Portanto, aquela pessoa estava a dizer que iria acusar em breve a recepção do documento (e não apenas que iria recebê-lo). Mas... sabê-lo-ia?