30 março 2012

"Estou cidrada" ou "estou siderada"?

Quando certas palavras se pronunciam de forma idêntica ou muito semelhante, há dúvidas que podem surgir apenas no momento em que nos vemos obrigados a escrever aquilo que apenas costumamos dizer. Então, o que nos confunde são os chamados parónimos: pares de vocábulos cujo significado é perfeitamente distinto, mas que pela forma se aproximam, como descriminado / discriminado, intersecção / intercessão, caçar / cassar, despensa / dispensa, elação / ilação, entre tantos outros. 

No caso de nos sentirmos surpreendidos, perplexos, atónitos, fulminados, "esmagados" por alguma coisa que experimentamos ou testemunhamos, o que devemos escrever: que estamos cidrados ou siderados?






A grafia certa é siderados. Vem do verbo latino siderāre, cujo significado é «sofrer a influência dos astros», como refere a Infopédia (daí a afinidade com sideral, relativo ao céu ou aos astros).

A forma participial "cidrados" só poderia vir do verbo cidrar, por sua vez derivado de cidra, o fruto da cidreira. Embora exista o substantivo cidrada, que é um doce feito com cidras, o verbo cidrar não se encontra atestado. Isso não nos impede de o usarmos, se for necessário. Porém, o seu uso deve reservar-se às situações em que uma pessoa ou coisa seja porventura esmagada por uma cidra...


26 março 2012

O correto e o incorreto: entre as duas balizas

A dicotomia correto/incorreto tem sido uma questão amplamente debatida na literatura, encontrando defensores, mas também muitos opositores.
De um lado, situam-se os normativos, puristas da língua, cuja correção linguística decorre do rigoroso cumprimento da norma escrita, fundada no exemplo dos clássicos da literatura. De outro lado, situam-se os linguistas descritivos, que privilegiam a variação linguística, com base na frequência do uso e cuja máxima é “o povo é quem faz a língua”. Porém, como sabemos, ao invés de criador da língua, o povo é, sim, um utilizador e recetor de tudo o que ouve e lê.
Tarefa difícil é a de quem, como eu, se encontra entre as duas balizas. Enquanto linguista, cabe-me a missão de observar e descrever os diferentes aspetos da língua, a sua variação, mudança, idiossincrasias e, enquanto professora, a missão de prescrever e veicular a norma.

Mas que norma? Afinal, o que é a norma?
Eugenio Coseriu definiu norma como "o conjunto de traços linguísticos distintos impostos por uma tradição cultural e social que se torna a referência para toda a comunidade linguística, sendo ensinada na escola e veiculada pelos meios de comunicação social, os quais, para serem entendidos pelo grande público devem veicular precisamente essa norma-padrão".
A norma é, assim, o resultado do processo segundo o qual uma variedade social, convertida em língua padrão, se torna num meio público de comunicação: a escola e os meios de comunicação passam a controlar a observância da sua gramática, da sua pronúncia e da sua ortografia.

E quem fixa a norma? Quem se atreve a exercer o papel de “tribunal” da língua?
Outrora, no séc. XVI, a norma estava na Corte, de cujos membros se aprendia o uso correto da linguagem. No séc. XIX, por sua vez, a norma emanava de Coimbra, berço da primeira Universidade.
Atualmente, a norma-padrão parece ser aquela que a Escola (todo o Ensino) e os meios de comunicação social – televisão, rádio e imprensa – difundem.
Mas com base em quê? Nos dicionários e nas gramáticas de referência? Nos autores literários? Nos escritores?
Para justificar as regras que prescrevem, as gramáticas normativas apoiam-se em larga medida nas atestações dos escritores. Quando as consultamos, ficamos felizes por constatar que uma dada estrutura sintática sobre a qual tínhamos dúvidas é afinal legítima, porque um grande autor a utilizou nas suas obras.
A verdade é que os escritores também têm dúvidas, como muito bem observou o professor Ivo de Castro no artigo intitulado O Linguista e a Fixação da Norma (2002) [in Actas do XVIII Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Lisboa], contando a seguinte história passada com o escritor Augusto Abelaira:
«Incerto quanto a uma construção sintática infelizmente não identificada, pegou na Nova Gramática do Português Contemporâneo para verificar se ela estava atestada; estava, mas atestada por uma citação do próprio Abelaira. Se Celso Cunha e Lindley Cintra estivessem cientes das hesitações de Abelaira, teriam mantido a citação? E, sem ela, a regra? O que um escritor escreve, porventura desviadamente, torna-se logo português de lei?».

Daqui se conclui que a norma é como uma prancha de surf, tentando servir de plataforma firme num mar instável que é a língua.
Esta metáfora quer tão-somente dizer que falta em Portugal uma Autoridade da Língua com força de lei e cuja missão fosse a de esclarecer os falantes sobre a pronúncia das palavras, a adaptação de estrangeirismos, algumas estruturas sintáticas mais complexas, os diferentes valores semânticos que as palavras vão assumindo; que estabelecesse a fronteira entre o erro e a variante linguística...
Enfim, que se ocupasse de todas as questões inerentes a uma língua viva, como é a língua portuguesa!

09 março 2012

"Quem Tem Medo do Acordo Ortográfico?"


O título acima foi o que demos a uma comunicação que fomos fazer ontem à Escola Básica 2 3 D. Pedro IV, em Queluz.
A pedido da responsável pela organização do evento anual Semana da Leitura, o tema foi o do Acordo Ortográfico. E como a turma que iria assistir à nossa apresentação já tinha aprendido, com a professora de Português, quais são as mudanças implicadas, optámos por levar-lhes alguns exercícios que suscitassem dúvidas e os nossos esclarecimentos.
A sessão correu bem, os meninos e meninas do 5.º ano estiveram extremamente atentos e foram muito participativos. As perplexidades foram surgindo e os porquês começaram a fazer-se ouvir. A cada regra que enunciávamos, para a eliminação de acentos ou para a utilização do hífen, surgia, de imediato, a excepção evidente e desconcertante. No final, e propositadamente, mostrámos-lhes um texto escrito numa grafia pós-acordo que, em vez de ser una e inequívoca, era escandalosamente mista e incompatível: uma "salada" de português europeu e português do Brasil.  A ideia era que percebessem que, apesar de tudo, o Acordo não nos obriga a nós a escrever "brasileiro" nem aos brasileiros a escrever conforme a grafia de Portugal. A certa altura, uma professora pergunta: «então se eu escrever "perspectiva" estarei a cometer um erro ou não?». Explicámos que em Portugal perspectiva não é aconselhado, ao passo que no Brasil é a grafia certa, pois lá pronuncia-se o [k] antes do t. «E se eu estiver no meio do Atlântico?», brincou ela.
E eu tive vontade de nunca mais me dispor a prestar esclarecimentos sobre um absurdo.

05 março 2012

Desafio linguístico

Existe alguma incorreção na frase que se segue?

«A maioria dos adeptos benfiquistas saiu do estádio com a moral em baixo!»